terça-feira, 8 de abril de 2008

Moral de laico

Francisco J. Laporta
(Catedrático de Filosofia do Direito da Universidade Autônoma de Madri)
Publicado no jornal espanhol El País em 04/04/2008.
Tradução: Sergio Mauricio

A cumplicidade de tantos prelados e fiéis com o capitalismo mais impiedoso, as ditaduras mais imundas ou os nacionalismos mais excludentes não impede que culpem de tudo aos que não crêem em religião alguma.

Começa a ser irritante o tom de superioridade moral com que muitos dos fiéis de qualquer confissão ou credo e as hierarquias religiosas que os propagam têm mostrado em olhar aos que adotam ante a convivência civil e o ensino uma postura agnóstica e laica. Agora insistem nisso as autoridades católicas, com Joseph Ratzinger à frente e os bispos espanhóis fazendo coro repetitivo de suas batidas orientações morais. Como os de qualquer outra velharia religiosa, voltam os católicos à ladainha de que a familiaridade com a ética e as exigências da moral é uma prerrogativa dos crentes, do que provavelmente carecem aqueles que não comungam nenhuma fé religiosa.

Resulta assombroso contemplar como se ignora a evidência de que uma parte não menor dos grandes desastres morais de que temos sido testemunhas durante anos e anos foi produzida em nome de crenças religiosas ou foi provocada e alentada por quem dizia obedecer a tais convicções. E não menos surpreendente é admirar - porque é, com efeito, algo tão paradoxal que é quase admirável - a facilidade com que esses credos se harmonizam com práticas políticas e econômicas que sabemos com toda certeza que - essas sim - são a causa da dor, da pobreza e do sofrimento de milhões de seres humanos, isto é, da grande imoralidade contemporânea.

A cumplicidade de tantos prelados e fiéis com a apoteose do livre mercado, das ditaduras mais imundas e dos nacionalismos mais excludentes são exemplos vexatórios desse paradoxo. E, contudo, os únicos que parecem responsáveis, os únicos a quem se reputa imorais, são os que renunciaram a guiar sua vida ou sua consciência civil por crenças dessa natureza. Ante tal argumento perverso, proponho-me reivindicar a superioridade moral do laico sobre o crente.

Com esta algaravia integrista, querem escamotear-nos de novo mais de dois séculos de pensamento. Para pôr um nome: em 1793 começava Kant seu prólogo à primeira edição de A religião nos limites da simples razão com uma afirmação que, digam o que disserem, é já incontestável: "A moral não necessita da idéia de outro ser acima do homem para reconhecer o próprio dever, nem de outro motivo impulsor que a própria lei para observá-lo". Para ser claro: a moral não necessita da religião, basta-se a si mesma, sem esse tipo de muleta, porque tem um sustento suficiente na racionalidade humana. Este ponto de partida elementar serve para definir o que pode ser a moral de um laico frente a essa outra moral necessariamente débil e vicária que é a moral do crente.

O que triunfa com o impulso ético ilustrado, a tolerância religiosa, e a separação Igreja-estado, é a idéia da igualdade moral essencial dos seres humanos à margem de suas convicções religiosas; a idéia de que não é a religião que confere sua qualidade moral às pessoas, senão uma condição anterior que não é moralmente lícito ignorar em nome de religião nenhuma e que não deve ceder ante considerações de caráter religioso. Essa igualdade constitui o núcleo da ética contemporânea, e com ela também de toda política justa, porque exige do poder que não faça distinções na estatura moral de seus cidadãos.

E essa idéia de dignidade humana que sustenta todo o edifício da moralidade laica se funde com a noção de autonomia da pessoa como capacidade de conformar em liberdade e a partir de si as convicções morais e os princípios que hão de presidir o projeto pessoal de sua vida. A isto, algum documento episcopal recente chamou "desejo ilusório e blasfemo" de dirigir a própria vida e a vida social, mostrando assim de novo que, embora se condimentem agora com a salsa fria do livre mercado, ser católico e ser liberal seguem sendo dois cardápios incompatíveis.

Pois bem, essa dignidade de ser moralmente autônomo confere-a a toda pessoa humana em condições de plena igualdade, de forma que se é uma blasfêmia, é uma blasfêmia que sustenta todo esse pensamento ético, e se expressa em certas exigências morais que o pensamento religioso, de qualquer tipo que seja, dista de ter assimilado bem. A religião e seu sedimento moral estiveram sempre atrás dessas conquistas éticas, e geralmente contrários a elas. Inclusive a idéia de direitos humanos, corolário direto delas, foi negada e perseguida terrivelmente pela hierarquia católica até boa parte do século XX. Nossos bispos sabem que se podem apresentar abundantes textos papais que tratam de tais direitos como erros morais absolutos. Para não mencionar algo que sobrevive ainda em quase toda moralidade religiosa: a posição da mulher num plano subalterno que lhe nega o acesso à hierarquia e à gestão do mistério.

Os bispos espanhóis somente seguem o rastro de certos lugares comuns muito cultivados por Joseph Ratzinger, a quem não posso chamar "pontífice", o fazedor de pontes, porque, como seu antecessor, parece mais bem empenhado em destruir as poucas e débeis que penosamente foram levantadas. Em sua doutrina moral exibe uma teimosa insistência nas perversões do "relativismo" como causa próxima de todos os males contemporâneos. E às vezes equipara subliminarmente laicismo e relativismo, escapando com isso a idéia de que uma coisa leva necessariamente à outra. Mas isto é simplesmente falso.

A moral dos laicos pode ser tão firme como a de qualquer um e tende, ademais, a ser menos acomodada que a moral do crente. A ética religiosa que pende dos desígnios da divindade (ou de seus intérpretes terrenos, que parecem ainda mais caprichosos) tem justamente problemas de relativismo que conhecemos ao menos desde Platão. Quando, no diálogo com Eutifron, Sócrates o pergunta se o bom é querido pelos deuses porque é bom ou é bom porque é querido pelos deuses, o problema da moralidade religiosa está servido. Se o primeiro, então a vontade dos deuses não mostra por que é bom; para descobri-lo temos que pensar como laicos. Se o segundo - isto é, que será bom somente porque assim o querem os deuses -, condena a ética religiosa a um relativismo desolador: as coisas serão ou não serão boas segundo se deseje aos deuses. A moralidade será, pois, relativa à vontade dos deuses (ou, como se dá de fato, às vozes mutáveis de seus supostos representantes na terra). Não cabe por isso nessa ética aquilo que define uma consciência moral madura: poder levantar a voz ante qualquer deus para dizer-lhe que seus desígnios são injustos. Somente uma convicção moral que não sujeite suas máximas aos ditados de um "ser acima do homem", quer dizer, uma convicção moral laica, é capaz disso.

O relativismo da moral religiosa se acentua, ademais, muitas vezes ao acrescer-lhe outros ingredientes, todavia mais vazios e mutáveis. As velhas religiões apelam teimosamente à tradição para sustentar a vigência de suas idéias morais e justificar a proteção pública. Mas cada tradição justifica uma moralidade diferente, e, se temos de ser conseqüentes, todas elas seriam somente por isso válidas. Não é este o núcleo mesmo da ética relativista?

Para não mencionar algo que não podemos esquecer facilmente, e menos na Espanha: que com freqüência desdita os crentes se aliaram e se aliam a ideais nacionalistas e patrioteiros, ou, como no Oriente Próximo, obcecam-se com a quimera de um território sagrado como receptáculo de sua vida moral como povo. A quantidade de maldade e de sangue que produziram essas posturas morais relativistas sustentadas em tradições e credos nacionais não necessita ser recordada entre nós. Diante delas é preciso afirmar a igual dignidade moral de todos os seres humanos, a peremptoriedade do respeito a seus direitos básicos e a universalidade de suas exigências ante qualquer ética caseira ou fideísta. Ou, o que é o mesmo, é preciso reclamar novamente a qualidade moral do pensamento laico.

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